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Sem carro, com consciência, com criatividade



Maria Júlia Soares tem 76 anos, é aposentada e há dois anos se mudou da zona norte para a região central de São Paulo, depois que seu neto, a única pessoa com quem morava, foi estudar na Europa. Ela conta que sua mudança foi motivada pela vantagem de não precisar usar carro e nem ônibus para se locomover no dia-a-dia. “Aqui tem médico, farmácia, feira, tudo perto. Faço tudo sozinha e a pé”.

Mesmo assim, a vida sobre rodas em São Paulo continua causando muitos transtornos a dona Maria. “É a maior dificuldade para respirar na rua, a cidade anda muito poluída. Além disso, os motoristas não respeitam os pedestres e eu vivo tomando sustos”, conta, depois de atravessar a rua sob a pressão de buzinas dos impacientes motoristas, reclamando do sinal que se fechou para os pedestres enquanto ela atravessava.

Dona Maria está entre os muitos paulistanos que optaram por soluções alternativas para se deslocar pela cidade sem depender de mais um automóvel preso no tráfego pesado. Para Orlando Strambi, professor do Departamento de Engenharia de Transportes da USP, o raciocínio que explica o trânsito caótico de São Paulo é “óbvio demais”. Segundo o especialista, os pouco mais de 15.000 quilômetros de vias da capital não são suficientes para acomodar a frota de quase 7 milhões de veículos que a cidade possui.

Para agravar a situação, mesmo com as ruas e avenidas saturadas de carros, a cidade continua emplacando, em média, 800 novos automóveis por dia. “Uma fila imaginária de todos os carros atualmente rodando em São Paulo se estenderia por 22.800 quilômetros, mais do que a distância entre São Paulo e Tóquio, no Japão, que é de 18.500 quilômetros”, compara Strambi.

A falta de um sistema de transporte público que ofereça conforto aos passageiros e que ao mesmo tempo tenha freqüência constante, agilidade e alcance toda a cidade são os principais argumentos que os paulistanos usam para não dispensar seus carros, ainda que passem longas horas no trânsito frequentemente parado. Por outro lado, pedestres e ciclistas que optaram por deixar seus carros em casa não poupam críticas aos motoristas, a quem acusam de não respeitar os demais usuários do trânsito.

Diante deste cenário, os paulistanos começam a encontrar alternativas de uso consciente do automóvel que, se forem praticadas por mais pessoas, podem ajudar a desafogar o trânsito cada vez mais caótico de São Paulo e com isso, melhorar a qualidade de vida na cidade. Entretanto,as dificuldades de se locomover na capital sem depender do carro sejam muitas.

Automóvel só para chegar ao metrô
“Os motoristas precisam enxergar pedestres e ciclistas como usuários do trânsito, não como gente que está ali atrapalhando. Quem não está dentro de um carro tem os mesmos direitos sobre o espaço público”, defende a educadora Renata Roza, 38 anos. Ela revela que até tentou trocar o carro pela bicicleta, mas a insegurança nas ruas a fez voltar atrás. Ainda assim, ela faz de tudo para usar o carro o mínimo possível.

Preocupada com a poluição do ar causada pelo uso excessivo de veículos motorizados, Renata usa o carro apenas no percurso entre sua casa e a estação Saúde do metrô, na zona sul da cidade. Lá, ela toma o metrô no seu segundo trajeto em direção ao trabalho, que fica próximo à estação Trianon, nos Jardins, região mais central e movimentada. “Mesmo assim, ainda me sinto muito culpada por usar o carro. Mas, foi a melhor opção que encontrei para ter o mínimo de conforto. Os ônibus são lotados e eu demoraria entre meia hora e 45 minutos a mais para fazer o mesmo trajeto de carro ou de ônibus”.

Ciclistas querem ser respeitados
O publicitário Maurício Grilli, 33 anos, mora no centro da cidade e trabalha na zona sul. Ele pedala 22 quilômetros por dia para ir e voltar do trabalho. Quando chove ou quando fica no escritório até tarde, tornando inviável o uso da bicicleta, ele opta pelo ônibus. Quase nunca usa o carro, que fica disponível para seu pai, com quem mora.

De bicicleta, o publicitário leva pouco mais de meia hora para chegar ao trabalho, quase metade do tempo que gastaria se fizesse o mesmo trajeto de carro ou de ônibus. A economia de tempo foi o motivo que mais pesou para que, há 11 anos, o publicitário escolhesse a bicicleta como meio de transporte.

Para chegar ao trabalho com mais segurança, ele trafega pelas ruas menos movimentadas. Embora o trajeto fique mais longo, ele evita o perigo de pedalar ao lado dos carros. “Se eu pudesse usar uma avenida como a Santo Amaro, por exemplo, reduziria ainda mais o tempo, mas é muito perigoso. Apesar de pequenas melhoras, a cidade ainda não se adaptou aos ciclistas. As ruas são estreitas e priorizam só os carros”, reclama.

Segundo Grilli, o dado animador é que está aumentando o número de pessoas que opta pela bicicleta como meio de transporte. “Tenho visto mais gente usando bicicleta como veículo e não como lazer”, constata. “Agora é preciso que os motoristas comecem a respeitar quem prefere bicicleta.”

Em defesa da saúde
A relações públicas Laura Fostinone, 26 anos, pertence à legião de paulistanos que resolveu trocar o carro pela bicicleta nos últimos tempos. Ela mora na Vila Madalena, zona oeste da cidade, e pedala poucos minutos até a estação do metrô. Ali, estaciona a bicicleta em um bicicletário e segue viagem de metrô até a estação Brigadeiro, nos Jardins.

“Se tivesse chuveiro no meu trabalho eu iria pedalando até lá. Acredito que muitas mulheres devem passar pelo mesmo dilema”, conta Laura. Na volta, em vez do metrô, ela pega outra bicicleta em um estacionamento da Porto Seguro, perto do trabalho, e volta até ao estacionamento perto de casa, onde troca a bicicleta emprestada pela dela.

Laura usa o carro apenas duas vezes por semana, quando precisa ir à faculdade à noite. “O número de carros cresceu absurdamente e aumentou a poluição na cidade, colocando em risco a saúde de todo mundo. Eu resolvi deixar de andar de carro, mas a poluição é muito forte e a gente vai sofrer com isso”, protesta.

Laura tem razão ao apontar os veículos como responsáveis pelo ar poluído da cidade. De acordo com um estudo realizado pelo Laboratório de Poluição Atmosférica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o crescimento da frota nos últimos cinco anos provocou uma grande piora na qualidade do ar. Atualmente, a poluição causada principalmente por veículos contribui para a morte prematura de cerca de 20 pessoas por dia na região metropolitana de São Paulo, enquanto em 2004 esse número era de 12 pessoas diariamente. Nesse tempo, a frota cresceu cerca de 30%. As mortes acontecem porque a poluição agrava doenças como pneumonia, asma, câncer de pulmão e infarto.

Ao buscar novas formas de se mover pela cidade, combinando as alternativas de transporte mais adequadas ao seu cotidiano, tanto Laura como os outros paulistanos que fizeram essa opção ajudam a construir uma cidade mais sustentável. “Com a consciência dos impactos de suas escolhas e a criatividade para encontrar outras formas de mobilidade, os cidadãos praticam ações que melhoram a qualidade de vida não apenas deles, mas de todos os moradores de sua cidade”, afirma Helio Mattar, diretor-presidente do Instituto Akatu.



Às vésperas do Dia Mundial Sem Carro, paulistanos contam por que trocaram o automóvel por outras alternativas de transporte na cidade
Rogério Ferro/Instituto Akatu