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Mudanças no Código Florestal Brasileiro



Historicamente, Deus já foi utilizado para enforcar, furar com flecha, espada ou bala mais de uma dezena de milhões de pessoas. Genocídios e pilhagens foram realizados no seu nome. Também não é novidade reivindicar Deus para conduzir multidões de ignorantes a pressionarem pelos projetos dos bem abastados. Mas utilizar Deus e a sua santa missa para promover a degradação do meio ambiente, ou da natureza que supostamente o próprio Deus criou, é novidade. Mais uma vez, o brasileiro demonstra a sua criatividade.

Há alguns meses, o Ministério do Meio Ambiente comemorou a negociação de uma dívida de US$21 milhões com os EUA. Dívida contraída na década de 60, protelada até então. Como quem comemora um calote, o Brasil, a nona economia do mundo, comprometeu-se em aplicar o montante em proteção ambiental. Irônico seria se parte desse recurso tiver sido utilizada para custeio de passagens e diárias de servidores do MMA que, com a sua presença, referendaram as “audiências públicas” do projeto de alteração do Código Florestal.

No Amazonas, por exemplo, compareci a um debate representando a Universidade Federal. Também estavam presentes representantes do INPA e da Embrapa, dentre outras instituições de produção de conhecimento científico no Estado. A cada uma dessas instituições foram cedidos exatos quatro minutos para expor seus respectivos argumentos. A audiência teve muito mais caráter de balcão das justas reivindicações dos pequenos proprietários que lá estavam e que ocuparam grande parte da plenária – bem como o de enaltecimento dos políticos sulistas “desbravadores” da região, que lá estavam presentes – do que de qualquer discussão sobre o projeto de lei em questão.

Lembro muito bem no fim dos anos 90, quando Eduardo Martins, então presidente do IBAMA, afirmou que os pobres e pequenos produtores eram responsáveis por 40% do desmatamento na Amazônia. Foi um alvoroço. Atualmente, de acordo com o IBGE no Censo Agropecuário de 2006, as propriedades de até 400 hectares detêm mais de 40% da área rural do país. Se o projeto for aprovado, elas poderão desmatar 100% de suas áreas que não forem de preservação permanente, as APP. Como se não bastasse, as APPs, atualmente com no mínimo 30m, também serão reduzidas para até 25% do limite atualmente definido.

É intrigante a argumentação de que a proposta de alteração tem bases científicas. Ao contrário, estudos de fragmentos florestais realizados pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, publicados em seu periódico Acta Amazônica, falam não em 30, mas em 100 e até de 300 metros o “efeito de borda” das clareiras. Uma faixa de 30 metros talvez comporte apenas uma única árvore emergente.

Nesse sentido, as complexas florestas tropicais heterogêneas do Brasil já estariam parcialmente comprometidas, mesmo com a faixa mínima de 30 metros respeitada. As APPs, até mais do que as reservas legais, por tenderem a ser contíguas, em função da malha hidrográfica, têm papel importante como corredores ecológicos, que permitem o fluxo gênico de espécies, além de funcionarem como reservas de predadores naturais das pragas melhoradas geneticamente pelos pesticidas agrícolas. Outra incoerência é a proposta de separar a APP rural da urbana, como se o solo ou a natureza se comportassem diferentemente em cada caso.

Com relação à Amazônia, a defesa da redução da Reserva Legal baseada no fato de 90% dos produtores não cumprirem a lei, é uma pérola. Imagine-se um raciocínio semelhante na discussão do projeto da ficha limpa.

Outro argumento falho diz respeito à viabilidade econômica do tamanho da propriedade. Os mesmos imigrantes sulistas, que avidamente desmatam a região, têm parentes nos locais de origem que vivem muito bem em propriedades de até 10 hectares. A questão é muito mais de conhecimento e de disponibilidade de insumos do que de tamanho de área.

Talvez pela pressão internacional, pelas mudanças climáticas ou pelo receio dos instrumentos tecnológicos, cada vez mais poderosos, desenvolvidos em Brasília e no INPE, os ruralistas tenham resolvido reagir organizadamente. E não há dúvida de que são poderosos. Somente no biênio 2008/2009, 29 áreas protegidas na Amazônia foram reduzidas ou extintas.

Independentemente desse projeto de lei, a sociedade brasileira precisará discutir o que pretende fazer com os 80% de Reserva Legal na região. Os ruralistas sempre alegam a dificuldade de viabilizar uma propriedade apenas com 20% de capacidade produtiva. Uma falácia gerada na ignorância do papel da Reserva Legal ou na má fé. Assim como deixa dúvida de ignorância ou má fé a argumentação de que a preservação da região é defendida por estrangeiros contrários ao desenvolvimento do país.

Cabe ao Estado implantar políticas públicas voltadas ao uso sustentável da floresta e dos seus infinitos recursos, em quantidade e energia no mínimo comparável com a quantidade e energia gasta no agronegócio.



Francisco José de Barros Cavalcanti/O Globo