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Mamíferos antigos dominaram terra, água e ar ...



 

O passado dos mamíferos não é mais como era antigamente. Até pouco tempo atrás, tudo indicava que os parentes mais antigos do homem viviam com o rabo entre as pernas, debaixo do domínio ditatorial dos dinossauros. Enquanto os lagartões se diversificavam e ocupavam todos os tipos de ambiente terrestre, mamíferos do tamanho de ratos se escondiam nas sombras, cavando tocas no chão, comendo invertebrados e só se arriscando a sair de casa na calada da noite. Pura ilusão, sugere um conjunto recém-descoberto de fósseis.

Imagine um mamífero primitivo forte, malvado e troncudo, mastigando impiedosamente um bebê-dinossauro; outro de nossos primos remotos planando livre, leve e solto pelo céu de uma floresta primitiva; e, finalmente, outro membro dessa trupe deslizando por um riacho com a agilidade – e o corpo – de uma lontra ou castor. São indícios que revelam uma vida muito diferente da de simples aperitivo de dino. Embora não fossem tão bem-sucedidos quanto os mamíferos de hoje, eles parecem ter colonizado os mais variados tipos de ambiente e se diversificado de forma insuspeita antes que os dinossauros sumissem, há 65 milhões de anos.

Essa nova visão sobre o passado remoto da nossa linhagem está se formando aos pouquinhos, peça por peça, conforme seus ossos fossilizados são desenterrados mundo afora. Por enquanto, o componente mais bombástico do quebra-cabeças ganhou o nome de Repenomamus robustus e vem da província de Liaoning, na China. Junto com os ossos do animal ficou preservado o conteúdo de seu intestino – um filhote de dinossauro que foi desmembrado e engolido em grandes bocados. O bebê devorado tinha 14 cm e era um pequeno Psittacosaurus – um tipo de dino herbívoro com bico de papagaio e tamanho adulto comparável ao de uma vaca. Como os dentes do bebê-dino mostram sinais de desgaste, isso indica que ele foi comido depois do nascimento, e não dentro do ovo.

Com dentes incisivos afiadíssimos, o R. robustus tem outra característica surpreendente: o tamanho. Com cerca de meio metro de comprimento e uns 6 kg de peso, trata-se de um bicho enorme para o padrão dos mamíferos que existiam há 130 milhões de anos. Um parente próximo dele, o Repenomamus giganticus, chegava a medir 1 m e pesar 14 kg – não muito diferente de um cachorro.

“Não acho que os mamíferos grandes fossem comuns nessa época, mas me parece possível que encontremos espécies ainda maiores”, diz Yaoming Hu, pesquisador do Museu Americano de História Natural que ajudou a revelar os dois fósseis para o mundo. “O tamanho não é, em si, uma surpresa tão grande”, explica Anne Weil, paleontóloga da Universidade Duke (Estados Unidos). “Nos últimos dez anos, os pesquisadores têm achado várias evidências de mamíferos grandes no Mesozóico (nome dado à era dos dinos). O problema é que eram só fragmentos. As espécies de Repenomamus são excepcionais porque esqueletos quase inteiros estão preservados.”

Além do mais, o tamanho é só parte da história. Acreditava-se também que a imensa maioria dos mamíferos que conviveram com os dinossauros eram bichos “generalizados” – termo usado pelos cientistas para se referir a uma espécie que ainda não se tornou especialista em nenhum tipo de vida, por assim dizer. Um animal cuja anatomia é generalizada é um faz-tudo: consegue sobreviver em situações de risco e se virar com quase qualquer tipo de comida, mas dificilmente vai se transformar numa espécie altamente adaptada a determinado ambiente. Muita gente apostava que os mamíferos primitivos tinham sido empurrados para esse papel marginal pelos dinossauros: os lagartões teriam ocupado todas as vagas no “mercado de trabalho” dos ecossistemas terrestres, por assim dizer.

Faz todo o sentido na teoria, mas esqueceram de combinar isso com a criatura apelidada de Volaticotherium antiquus (algo como “mamífero voador antigo”, numa mistura de grego e latim). Para variar, trata-se de mais um espetacular fóssil chinês, cujo grau de preservação é tão impressionante que marcas do couro e dos pêlos do animal chegaram até nós. Couro e pêlos, aliás, que se estendiam numa estranha membrana. Ela começava no pulso das patas da frente e ia até as patas de trás, juntando-se também à cauda. O tecido flexível quase certamente se abria como uma asa delta, permitindo que a criatura planasse por dezenas de metros quando saltava de uma árvore a outra.

É uma adaptação ao “semivôo” muito parecida com a de alguns mamíferos modernos, como os esquilos-voadores das florestas da América do Norte. O animal, descoberto por Jin Meng (outro pesquisador chinês “fisgado” pelo Museu Americano de História Natural), pesava só 70 gramas quando vivo e, a julgar por sua dentição, era chegado numa dieta à base de insetos. As patas, com garras fortes, permitiam que ele ficasse preso ao tronco das árvores, enquanto sua cauda achatada e pouco móvel fazia as vezes de estabilizador de vôo quando ele dava um salto. Apesar do tamanho diminuto, eis um bicho que certamente não virava almoço tão fácil.

O ar, como vimos, foi praticamente dominado por esse mamífero primitivo, embora ele não chegasse a voar para valer, como os morcegos. Faltam a água e a terra – devidamente tomados por duas criaturas cuja existência nenhum paleontólogo teria sido capaz de prever. Um desses bichos é o simpático Castorocauda lutrasimilis (“cauda de castor parecido com lontra”, literalmente), natural da Mongólia Interior há uns 165 milhões de anos.  

O corpo esguio e as patinhas da frente reforçadas lembram um ornitorrinco; já a cauda era achatada e com poucos pêlos, como a de um castor, e os dentes parecem ter sido feitos especialmente para devorar peixes. Calcula-se que o animal pesasse cerca de um quilo quando vivo. Já o Fruitafossor windscheffeli, descoberto no Estado americano do Colorado, poderia ser acusado de plágio pelos atuais tamanduás e tatus, se não tivesse vivido há 150 milhões de anos. Todos os detalhes de seus dentes e esqueleto indicam que ele era especialista em abrir ninhos de cupim e comer insetos sociais.

E daí? - Cada um dos bichos descobertos recentemente tem seu charme, e sempre faz bem para o ego achar um dinossauro na barriga de um mamífero. Mas qual a implicação desses achados para o que sabemos sobre a evolução do nosso grupo? “Significa essencialmente que ainda precisamos descobrir quase tudo sobre os mamíferos mesozóicos. Animais aquáticos, planadores, predadores de dinossauros etc. talvez constituam apenas a ponta do iceberg do que as investigações futuras trarão”, diz o paleontólogo Reinaldo José Bertini, da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Rio Claro.

“Dava para dizer que o Repenomamus era um carnívoro só de olhar para o crânio dele, mas o que comia? Estamos acostumados a pensar nos dinossauros como predadores e nos mamíferos como presas. Claramente, os ecossistemas da época eram mais complicados do que isso”, diz Anne Weil.

A ironia por trás dessa história, no entanto, é ainda mais profunda. Os mamíferos “especialistas” do Mesozóico são todos membros de linhagens que não deixaram descendentes. “Apenas os descendentes dos mamíferos generalizados chegaram até hoje”, afirma Bertini. “Enquanto os dinossauros desapareceram completamente, 75% dos mamíferos também foram para o beleléu. É por isso que, se houver um conflito nuclear, apenas os generalizados sobreviverão – como ratos, baratas, pardais, ervas daninhas etc.”

Ou seja: os ancestrais dos mamíferos vivos hoje não participaram da aventura de colonizar ar, terra e água, permanecendo relativamente próximos do estereótipo do “mamífero fujão” antes imaginado pelos paleontólogos. Mas, ao não explorar as oportunidades imediatas, eles podem ter garantido o seu potencial evolutivo futuro. Claro que não de propósito: uma espécie não tem como “escolher” evoluir ou não. O importante é que o organismo dos nossos ancestrais continuou sendo “pau para toda a obra” – e garantiu que, no fim das contas, eles herdassem a Terra.



... e ainda devoravam dinossauros
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