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PL da biodiversidade opõe cientistas e ministérios



Texto que corrigiria incoerências no processo de pesquisas revelou-se ‘Frankenstein’ que não agrada ninguém

Herton Escobar escreve para “O Estado de SP”:

Bandeiras brancas foram hasteadas, mas pesquisadores, ministérios e organizações não-governamentais continuam em pé de guerra quanto às regras de acesso aos recursos genéticos da biodiversidade brasileira.

O tão aguardado anteprojeto de lei (APL), que deveria corrigir as incoerências da medida provisória que rege o tema desde 2001, foi apresentado pela Casa Civil para consulta pública no início de dezembro. O que poderia ser um presente de Natal, porém, se transformou em mais um tormento para os cientistas que se dedicam a estudar a biodiversidade nacional.

“É um texto da Idade da Pedra, que mostra o total despreparo técnico do governo para tratar desse assunto”, diz o zoólogo Hussam Zaher, especialista do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. “É uma lei totalmente embasada em exceções e expressões dogmáticas, que, se aprovada, vai engessar completamente o estudo da biodiversidade no País.”

O texto, disponível para consulta no site da Casa Civil até o dia 13 de abril, antes de ser encaminhado ao Congresso, é rejeitado por completo por algumas lideranças científicas. A Sociedade Brasileira de Genética (SBG) classificou o projeto de “inaceitável”, assim como “qualquer tentativa de corrigi-lo”.

“O texto não tem salvação; tem de jogar fora e começar de novo”, diz a ecóloga Rosane Collevatti, da Universidade Católica de Brasília, que representa a SBG no grupo de trabalho que trata do assunto na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “Não adianta mudar uma vírgula aqui ou um artigo ali. É um problema de fundo filosófico, segundo o qual o pesquisador é tratado no mesmo patamar de um criminoso ambiental qualquer.”

“Não dá para remendar, porque o projeto já é uma colcha de retalhos”, reforça a bióloga Rute Gonçalves Andrade, pesquisadora do Instituto Butantã e secretária da diretoria da SBPC. A sociedade também pede uma revisão profunda do projeto.

Segundo a SBPC, o projeto ignora muitas das recomendações feitas pelos cientistas ao longo dos últimos anos. “O princípio que orienta as recomendações da comunidade científica é descriminar integralmente a pesquisa científica. O projeto de lei apenas tangencialmente atende a essa reivindicação, de forma muito tímida”, afirma o grupo. Para os cientistas, a legislação vai contra o compromisso do Brasil de conhecer sua biodiversidade e agregar valor a ela.

Crise anunciada

As pesquisas com fauna e flora do Brasil estão em crise profunda desde 2001, quando o governo federal baixou uma medida provisória (a MP 2.186) com o intuito de combater a biopirataria. O tiro saiu pela culatra, atingindo em cheio a pesquisa científica nacional.

Da noite para o dia, nenhum cientista podia mais encostar numa folha ou numa formiga sem antes provar sua “inocência” e pedir autorização ao governo. Conseguir uma licença para pesquisas de campo transformou-se uma via-crúcis burocrática, que freqüentemente levava a lugar nenhum. Muitos estudos foram abandonados.

O próprio governo, desde então, tenta acabar com a MP e substituí-la por um projeto de lei amigável à ciência, mas sem sucesso. Os efeitos da medida provisória foram amenizados a conta-gotas, por meio de decretos e regulamentações, mas o projeto de lei que deveria resolver de vez a questão passou anos trancafiado na Casa Civil, amarrado em disputas ministeriais.

Quando o texto saiu, ninguém quis assinar embaixo. “É um Frankenstein”, resume o representante do Ministério da Agricultura no debate, Roberto Lorena. “Juntaram tudo e criaram uma espécie de monstro”, diz o assessor de políticas públicas da ONG Instituto Socioambiental (ISA), Henry Novion.

O projeto tenta regulamentar, em uma só tacada, vários temas complexos e não necessariamente relacionados: pesquisa científica básica (sem interesse comercial), bioprospecção (com interesse comercial), proteção dos conhecimentos tradicionais (como o uso de ervas medicinais indígenas) e repartição de benefícios pelo eventual uso comercial desse conhecimento.

Aí entram os interesses de vários ministérios, em especial os da Ciência e Tecnologia (MCT), Meio Ambiente (MMA) e Agricultura e Pecuária (Mapa). O MCT não quer o MMA dizendo a seus pesquisadores o que podem ou não fazer. O Mapa também não quer ninguém interferindo nos assuntos da agricultura. O MMA quer garantir a conservação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais, sem acorrentar a ciência, como faz a MP atual.

O texto apresentado pela Casa Civil tenta atender a todos os interesses, mas acaba não agradando ninguém. O projeto propõe a criação de uma série de cadastros, licenças e relatórios para monitorar e controlar as pesquisas com biodiversidade e as relações entre cientistas e povos tradicionais.

“Virou uma loucura por dados; querem cadastrar tudo”, revolta-se João Alves de Oliveira, chefe do Departamento de Vertebrados do Museu Nacional da UFRJ. “É um monte de cadastro para nada, para gerenciar o vazio. Só querem informações para nos prejudicar.”

“Nenhum cientista se nega a prestar contas; já dedicamos 80% do nosso tempo a isso. Só queremos que essa regulamentação seja feita de forma racional”, afirma Rosane, da SBG. “O que estão pedindo é absurdo.”

O secretário-executivo do MMA, João Paulo Capobianco, reconhece que o texto manteve um viés controlador da pesquisa. E pede mudanças. “É preciso flexibilizar mais; queremos não só desonerar a pesquisa da biodiversidade, mas estimulá-la.”

A proposta do MMA, segundo ele, é separar completamente as atividade de bioprospecção das de pesquisa básica, que não precisaria de autorização para ser feita. A idéia é regular a pesquisa apenas a partir do momento em que ela chegar a um produto comercial de fato - o que é a exceção -, deixando as etapas iniciais livres de amarras burocráticas e contratos. Mas ninguém conseguiu produzir um texto nesse sentido, ainda.

“Realmente, o capítulo sobre coleta ficou muito ruim”, diz o ex-secretário-executivo do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) do MMA, Eduardo Vélez, que participou intensamente das discussões sobre a lei até o ano passado. “Não sei o que aconteceu, mas não era para sair assim.”

A Casa Civil informou que não daria entrevistas e que a reportagem deveria consultar cada ministério separadamente.

O que a lei quer criar

Agrobiodiversidade - Um novo conceito que se refere apenas às espécies usadas na agricultura, que teriam tratamento diferenciado do resto da biodiversidade

Cnact - Cadastro Nacional de Controle de Atividades de Pesquisa Científica ou Tecnológica de Recursos Genéticos; administrado pelo MCT, para registrar todos os cientistas e atividades relacionados ao estudo da biodiversidade

Cngen - Cadastro Nacional de Acesso aos Recursos Genéticos e ao Conhecimento Tradicional Associado; vinculado ao MMA, para o registro de atividades envolvendo o uso de recursos genéticos e/ou de conhecimento tradicional

Cnab - Cadastro Nacional de Agrobiodiversidade; gerenciado pelo Ministério da Agricultura, para o controle de atividades envolvendo recursos genéticos e uso de conhecimentos tradicionais relacionados à agrobiodiversidade

AgroBio - Órgão Gestor do Recurso Genético Proveniente da Agrobiodiversidade, que seria criado para gerenciar o CNAB e proteger os direitos dos agricultores

Cide - Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico; imposto que incidiria sobre a exploração comercial de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, com alíquotas de 1% a 2%

Furb - Fundo de Repartição de Benefícios do Recurso Genético dos Conhecimentos Tradicionais Associados, um fundo vinculado ao MMA que receberia metade dos recursos arrecadados pela Cide para uso em políticas de conservação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais

Glossário

Biodiversidade - São todas as espécies de animais, plantas e microrganismos que compõem a fauna e a flora nativas do Brasil

Recursos genéticos - Numa definição abrangente, são todas as moléculas que fazem parte do organismo, incluindo seu DNA, RNA, enzimas e outras proteínas

Bioprospecção - A busca de moléculas naturais que tenham alguma aplicação comercial, principalmente na indústria de fármacos, cosméticos e alimentos

Biopirataria - O roubo ou o uso não autorizado de um recurso genético da biodiversidade brasileira para fins comerciais

Conhecimento tradicional - É a “sabedoria” acumulada dos povos tradicionais (como indígenas e quilombolas) sobre o uso da biodiversidade. Por exemplo, o conhecimento sobre o uso de plantas medicinais

Repartição de benefícios - Conceito segundo o qual os povos tradicionais devem receber parte dos benefícios (financeiros ou não) obtidos a partir do uso do seu conhecimento

Pesquisa básica - A produção de conhecimento científico sobre a biodiversidade, sem objetivos comerciais, como pesquisas sobre ecologia e identificação de espécies, que compõem o dia-a-dia da biologia e orientam as políticas de conservação

Coleta - A atividade básica de coletar animais e plantas na natureza para identificação e realização de pesquisas. É a prática mais primordial e rotineira do estudo da biodiversidade

Mecanismo de arrecadação também é polêmico

Imposto incidiria sobre produtos desenvolvidos a partir do conhecimento tradicional

Apesar dos problemas criados pelas normas de coleta científica, Eduardo Vélez acredita que outros dispositivos apresentados no anteprojeto de lei são satisfatórios, especialmente no que diz respeito aos conhecimentos tradicionais e à repartição de benefícios.

“Esses são, de fato, os objetivos principais da lei”, afirma Vélez, que foi secretário-executivo do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cgen) entre 2003 e 2007. “O texto, a princípio, nem precisaria tratar de coleta científica.”

Uma das novidades propostas pelo projeto é a criação de uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) que incidiria sobre todos os produtos desenvolvidos a partir de conhecimentos tradicionais ou de recursos genéticos da biodiversidade brasileira.

O dinheiro arrecadado por essa Cide, então, seria dividido entre o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), para fomentar novas pesquisas, e um novo Fundo de Repartição de Benefícios do Recurso Genético e dos Conhecimentos Tradicionais Associados (Furb), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente.

Os recursos do Furb, por sua vez, seriam aplicados meio a meio em programas de conservação da biodiversidade e proteção dos conhecimentos de povos tradicionais, como indígenas, quilombolas e caiçaras.

Dessa forma, aponta Vélez, todos os cientistas e comunidades tradicionais serão beneficiados por uma descoberta, mesmo que não tenham contribuído diretamente para ela. “Na minha opinião, é um mecanismo excelente”, defende Vélez. “Esse é o filé da lei, que resolve de maneira efetiva como se deve fazer a repartição de benefícios no Brasil.”

O Ministério da Agricultura discorda. “Nós abominamos essa Cide”, afirma Roberto Lorena, secretário da Comissão de Desenvolvimento Sustentável da Agricultura. “A lei deveria incentivar a pesquisa e não taxá-la. O Brasil já não conhece a sua biodiversidade; se tivermos de pagar imposto para conhecê-la, aí é que vamos continuar no escuro mesmo.”

Para Henry Novion, do ISA, o projeto não foi suficientemente discutido com a sociedade, muito menos com os povos tradicionais. “Não adianta simplesmente jogar o texto na internet. As populações que vivem no meio da floresta nunca terão acesso a isso”, disse. “A impressão é que eles querem jogar essa batata quente para o Congresso e o Congresso que se vire com ela. Mas o risco de um projeto complicado como esse ficar eternamente tramitando é enorme.”

No conjunto, diz Novion, o APL é um avanço. “Mas, quando entra nos detalhes, está cheio de furos, erros e duplicação de competências. Não é, nem de longe, um projeto de lei aceitável.”

O secretário do MMA, João Paulo Capobianco, garante que a consulta pública “é para valer” e que todas as sugestões serão consideradas. “Em vez de manter as negociações dentro do governo, decidimos que seria melhor colocar algo na mesa e abrir a discussão para a sociedade”, explicou.


O Estado de SP, 16/3